quinta-feira, 12 de março de 2009

Texto

Quero compartilhar com vocês um texto da Regina Machado que li no capítulo 3 do livro A Imagem no Ensino da Arte da Ana Mae Barbosa. O texto pode ser lido do ponto de vista das diferentes áreas, então espero que aproveitem, tem a ver com nossas discussões em aula.

Que possibilidade o nosso sistema educacional oferece ao adolescente de exercer uma consciência interrogante? Acho desnecessário responder a esta questão, todos sabemos o quanto uma criança, desde mais ou menos sete anos, já está "formada" pelos padrões da lógica do certo e do errado, o quanto suas possibilidade de perguntar sobre o que pode ser estão enquadradas em regras preestabelecidas. Daí pra frente ela busca sempre aceitar, guiando-se pelo que "parece estar de acordo" com o mundo adulto, pelas exigências exteriores do "vencer na vida". O momento da adolescência me parece crucial como oportunidade para que a escola preencha de significação essa revelação da existência como algo particular, intransferível de que fala Octavio Paz. É preciso que o adolescente tenha a possibilidade de se apoderar do ser único que ele é, das suas aptidões, sonhos, angústias e indagações; penso que isso ele pode conseguir se puder EXPRESSAR ou construir, de forma significativa, a reflexão sobre o seu "assombrar-se de ser". É preciso ter espaço e condições que permitam, se eu tenho quinze anos, confrontar-me com quem eu sou enquanto individualidade, no momento em que eu a descubro como minha. Além da voz, que me diz o tempo todo como eu devo ser, como devo vestir-me, comportar-me, o que devo dizer, o que devo escolher, é preciso que me seja permitido escutar uma outra voz que pergunta dentro de mim o que eu PODERIA ou GOSTARIA de ser. É preciso enfim que eu possa IMAGINAR. Quero dizer, imaginar não no sentido pejorativo que esta palavra tem cada vez mais na nossa sociedade, ou seja, o de produzir ilusões, fantasias, “gostaria de ser uma princesa” etc. Mas falo da função primordial da imaginação, que é a de possibilitar ao indivíduo perguntar-se sobre o que pode ser, livre das amarras do certo e do errado, para que aquilo que é real seja significativo para quem pergunta. O real deixa de ser rígido preestabelecido para sempre e passa a ser algo que possa olhar de vários ângulos para encontrar a melhor forma de compreendê-lo.
O que o processo da socialização faz com a imaginação? A criança pequena entra na escola e encontra o olhar complacente do adulto: ”que lindo o seu desenho, olhe só que imaginação que ‘criatividade’, como é interessante seu jeito diferente de perguntar”. Isto, na melhor das hipóteses, quando encontra um adulto “sensível” ao “mundo infantil”. Então aí a Imaginação está bem, afinal, dizem, a criança ainda “não sabe pensar direito”, a fantasia estrutura o ser da criança, é sua forma de relacionamento com o mundo. Ela precisa brincar – quando deixam, é claro – também desenhar, ouvir estórias; ainda não está na hora de ESTUDAR. No 1º grau, tudo muda: a seriedade dos números, palavras, regiões do mundo, corpo humano invade os espaços ocupados até então pela Imaginação.
Tais informações poderiam e podem conviver com a Imaginação, de muitas formas. Mas, em geral, o que acontece é que a razão e a imaginação são colocadas em compartimentos separados e estanques, até mesmo pelas tentativas modernas de juntá-las: o desenho da caravela junta-se à matéria sobre desenvolvimento do Brasil, ou coloca-se em dramatização o texto da aula de português. Mas trata-se de uma relação mecânica e não orgânica como poderia ser. Isto se dá por um desconhecimento da complementaridade que existe entre a razão e a imaginação em todo o processo genuíno de aprendizagem.
Pior do que isso, tal desconhecimento gera uma desinformação muito grave na visão que se tem da imaginação, relegada aos artistas, aos loucos e às crianças. Muitos autores chegam a discutir o perigo de incentivar a atividade imaginativa no sentido de que ela poderia impedir a atuação do indivíduo no mundo: a fantasia “tira” a pessoa da realidade, deixa-a “sem recursos” para enfrentar os problemas concretos que a vida apresenta. Não há dúvidas que existem mecanismos neuróticos, doentes, que isolam determinados indivíduos em uma fantasia exacerbada, na qual eles se refugiam por se sentiram incapazes de lidar com a realidade.
Mas a alienação não se produz apenas pela fantasia. E a fantasia não se reduz à a alienação. Esta apenas é um mau uso de uma faculdade humana que existe justamente para promovera afirmação do homem enquanto ser criador, para mostrar diferentes ângulos possíveis, de uma realidade que a lógica apresenta de uma só forma.
Antigamente, nos povos tradicionais, o momento da adolescência era marcado por ritos de iniciação, que tinham a função precisa de introduzir o indivíduo na SIGNIFICAÇÃO de ser adulto. A visão de mundo daquela sociedade estava expressa em símbolos compartilhados por todose tal conhecimento era transmitido ao adolescente através de rituais que o faziam passar por duras provas, marcavam-no, escreviam, às vezes no seu corpo, na sua mente, o modo como aquele grupo humano entendia seu estar no mundo.
Na nossa sociedade, o adolescente recebe REGRAS e não SIGNIFICAÇÕES. Ele deve aceitá-las para poder se transformar num cidadão bem-sucedido. Edmund Burke Feldman fundamenta sua teoria e método da arte-educação na necessidade que hoje temos de ritualizar nossas crises de confronto com a vida, durante várias etapas do nosso crescimento. Segundo Feldman, só existe crise de adolescência em nosso mundo, porque tal crise não é RITUALIZADA por nenhum rito de passagem. A arte então cumpriria um importante papel nesse sentido, possibilitando ao indivíduo, através de sua expressão, confrontar-se com suas crises.
Acredito que a arte tem, de fato, uma função específica nesta fase da vida do indivíduo, em que ele deixou de ser criança, em que se vê como consciência interrogante e ainda não é adulto. Comecei falando da Imaginação porqu ela é indissociável da atividade artística, uma não existe sem a outra. A primeira considerei a imaginação como potencialidade humana fundamental para qualquer idade ou atividade; não existe pensamento genuíno sem imaginação. Toos os relatos dos grandes cientistas, como por exemplo Poincaré ou Einstein, falando de seu trabalho, mostram o quanto a imaginação e intuição estão na base de qualquer investigação científica. Para chegar a uma verdade nova, que contribua para o avanço da ciência, o investigador precisa arriscar, perguntar, transgredir o que já está dado como certo, como logicamente possível. Se passamos pelo plano dos cientistas, pequena parcela da humanidade, para todos os outros sers humanos, o fenômeno é o mesmo. Um adulto equilibrado, que seja capaz de resolver satisfatoriamente os problemas que a vida que apresenta, necessita não apenas do pensamento lógico, mas também da intuição e da imaginação.


Regina Machado, “AHC ED ASAC: uma Reflexão sobre a Função da Arte no Magistério” 1988, texto manuscrito.

3 comentários:

Carolina S. disse...

Adorei o texto!! E neste sentido preciso dizer que vejo como um dos grandes problemas do ensino de Química a falta de imaginação dos estudantes, como alguém com um pensamento totalmente lógico pode compreender elétrons orbitando um núcleo? Sim, porque eles sabem reproduzir o que dizemos, mas isso até um gravador consegue fazer; este (como muitos outros) é um conceito abstrato, assim como "ver" um molécula 3D... se a pessoa não desenvolveu uma boa noção de espaço, não vai compreender, vai apenas repetir o que o professor fez, e apenas com os exemplos que este deu (ocorre o tempo todo, inclusive dentro da faculdade de Química).
Fica o questionamento, se na escola desenvolmenos apenas a "lógica", em que espaço aprendemos sobre nosso corpo? Como desenvolvemos a criatividade? E de que forma que isto é feito? Porque de alguma forma nós fizemos... ou ainda tentamos.

Luciana disse...

Ótimo texto. Este livro já tem um bom tempo, mas traz questões bem atuais e como tu mesmo apontas, traz reflexões para todas as áreas. Como está mesmo a nossa capacidade de imaginação?

Karolina disse...

Também gostei muito do texto. Hoje, reli um trecho de Paulo Freire que parece complementá-lo: "A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta." (FREIRE, 1996, p. 93). Acredito que o que falta em sala de aula, muitas vezes, é LIBERDADE para pensar, e é claro, imaginar. A cultura da "cópia" é algo que deve ser combatido urgentemente. Além de liberdade, falta também tempo. As crianças hoje têm tantas atividades quanto um adulto. Parece faltar o tempo que eu tinha para a imaginação. Mas, quando eu tinha esse tempo e a imaginação solta, faltava a liberdade de levar essa imaginação para a sala de aula.