DE MISTÉRIOS, POMBOS E VINHOS
Ivo Bender
Os alunos diretores comentavam que, em certas madrugadas, durante os ensaios de final de semestre, vozes ininteligíveis pareciam querer dizer um texto nas salas vazias, aplausos irrompiam do anda , e um piano solitário, rouco de tão antigo, subitamente rompia sua mudez.
Mas não era por esses incidentes um tanto prosaicos que reivindicávamos a ocupação do prédio lindeiro ao nosso. É que o antigo espaço tornara-se pequeno para abrigar os cursos que cresciam ano após ano. Por isso, enquanto a Reitoria decidiu ceder à pressão dos docentes e nos ofereceu o edifício abandonado da rua General Vitorino, resolvemos dele tomar posse inteiramente. E, como gesto emblemático, derrubamos uma porta secreta que ligava os dois prédios.
Construção de quatro pisos, gélida e ressoadora, o edifício já abrigara, em outros tempos, diferentes cursos. Desde há muito fechado, era agora refúgio de pombos e aranhas.
Começamos por abrir portas e janelas emperradas. Entrando numa das salas amplas, deparei com os restos de um pombo branco. O pequeno cadáver ressecado perdera a alvura da plumagem e jazia ali, como que à espera de alguém menos apressado que o devolvesse à terra.
Minha reação inicial foi de repulsa. Logo em seguida de um obscuro sentimento de mau- agouro. Um pombo morto sobre o frio parquê de uma sala desabitada: como interpretar o achado?
Seria prenúncio de que a Reitoria voltasse atrás e talvez nos negasse a nova sede? Ou, quem sabe, nossos cursos seriam definitivamente desativados já que, desde a instalação do regime militar, falava-se no incômodo que o Departamento representava: pois não era em seus cursos que se liam os textos de um tal Bertold Brecht, perigoso comunista alemão? Não era ali que uma certa Electra, filha desnaturada e vingativa, esbravejava contra quem detinha o poder? E, por fim, não era naquelas salas que um simpatizante dos militares desvelava, impiedosamente, as chagas que corroíam a família brasileira? Sim, pois não fosse Nelson Rodrigues um traidor, teria ele escrito coisas como Álbum de Família ou Beijo no Asfalto?
Enquanto minha fantasia trabalhava buscando decifrar o que agora já tinha fora do oráculo, um tênue bom-agouro começou a intrometer-se: mas não são os pombos aves consagradas a Afrodite? E a deusa não preside o amor e as artes? "Claro, mas esse pombo está morto!" "Certo", respondo eu próprio para mim mesmo. "O pombo está morto, a deusa, porém, só pode estar viva. Na dúvida basta ficar atento para as rosas que se abrem ao sol da manhã, basta surpreender os jasmins exalando seu aroma na quietude da noite".
Eu precisava, porém de indícios mais tranquilizadores e menos líricos. No esforço de contrapor uma interpretação menos catastrófica ao que insistia em se mostrar como um vaticínio ameaçador, eu inventava sinais, forjava evidências e chegava a comprovações definitivas: sem dúvida, os deuses voltariam sua face para nós, professores e alunos, mesmo que as autoridades de Brasília continuassem a nos ver como outsider acadêmicos.
Eu não me movera, ainda ali com o pássaro empoeirado a meus pés, minha mente vaga va por um mar de conjunturas. De repente, na inquieta sucessão de imagens, uma forma tomou corpo e, com ela, desenhou-se um nome. A partir daí, impressões e sentimentos cederam lugar para o deus- máscara: sozinho, ele reinava no imponderável espaço de minha fantasia. E fui tomado pela categórica certeza de que o prédio seria nosso, que o Departamento teria longa vida. Pois, desde sempre, não tivera o teatro um deus próprio? Uma divindade um tanto marginal, por certo, um deus feminil e pândego mas quê, nem por isso, era menos deus. Sim, Dionisos certamente defenderia os interesses de seus pesquisadores, com o mesmo empenho com que, certa vez punira um jovem rei em Tebas.
De fato, até o momento em que recolho estas memórias, o Departamento de Arte Dramática continua em sua tarefa de formar profissionais. Assim, Édipo e Macbeth, Hedda Glauber, Arandir e Misael, Lisístrata e Santa Joana dos Matadouros, entre tantos outros companheiros de drama, continuam vivos num tablado da casa. Por isso, não há razão para surpresa quando, na volta de um corredor mal iluminado, flagramos a obsessiva Antígona, em seu lutuoso desafio. Ou quando, apurando o ouvido, distinguimos através das grossas portas os sussurros de Clitemnestra e Egistro, a maquinarem a matança do rei.
A revivescência de situações marcadas pelo pranto ou pelo riso, com seu desfile de máscaras e aparições, tem certamente a mão de Deus no comando. Ou, melhor dito, a mão dos deuses. Se o leitor duvida, convido-o a visitar o maltratado prédio da General Vitorino. Ali, a qualquer hora do dia, pode-se observar a revoada de pombos na face fronteira do edifício. São as aves de Afrodite a demarcar um território há muito pertencente à deusa.
Mas se os pássaros não são evidência bastante, resta entrar em casa. O visitante notará, aqui e ali, umas nódoas escarlates entranhadas no chão. "Alguém, numa festa antiga, derramou vinho por aqui" , dirá sem disfarçar a malícia no sorriso. E seguirá adiante, pisando nos rastros deixados por um bêbado Dionisos.
Revista Cena Ano 1/Nº 1 - Abril/2000